quinta-feira, 11 de setembro de 2025

IASP | Crime e Castigo - Ana Elisa Bechara

No dia 09 de setembro de 2025, no Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), ocorreu o evento presencial sobre a clássica obra russa, Crime e Castigo, do autor Fiódor Dostoiévski. A palestra, na ocasião, foi proferida pela professora titular de direito penal da USP e vice-diretora, Ana Elisa Bechara. O acontecimento foi organizado pela Comissão de Direito e Literatura do IASP, pelo seu presidente, Ricardo Peake Braga, e sua vice-presidente, Marina Bevilacqua de La Touloubre.

Inicialmente, a expositora afirmou que direito e literatura, com razão, se trata de um mundo mais rico! Que a ideia do evento seria a troca de ideias e realização de debates, um bate papo. Tudo sob a perspectiva de uma penalista.

Como penalista, disse que os penalistas são insensíveis por natureza, fazendo a racionalização da violência, o que seria um paradoxo, já que a violência é humana. Igualmente, essa insensibilidade marca a naturalização do poder punitivo do Estado.

Em seguida, dispõe que, quando se lê um livro, não tem como não se emocionar, pois tira-se do conforto, para enfrentar fantasmas, que ficam abertos pela dogmática. Com efeito, a discussão não é simples, porque fica na consciência.

Então, hoje, trabalhar com fantasmas revela a complexidade do ser humano. Tal complexidade é inerente à narrativa literária, demonstrando a essencialidade natural das coisas. Assim, aborda o mundo técnico, onde os homens são úteis, o que difere da construção literária.

Com certeza, Crime e Castigo, não merece uma aula, mas um curso, nas palavras da palestrante. É, sem dúvida, uma obra de arte complexa, com muitos pontos de discussão, passando pela filosofia, sociologia, teologia, psicologia e também pelo direito.

De fato, é uma obra perene que antevê a realidade atual, uma obra clássica que perdura até os dias atuais. Tal obra é fruto da experiência do autor, que foi prisioneiro na Sibéria, na época da monarquia russa. Ele foi condenado à pena de morte, mas na última hora foi libertado pelo Czar. Teve, realmente, uma experiência de quase morte. Sofreu uma transformação de vida, o que impactou sua obra literária, com influência da política de então.

Como disse, foi prisioneiro na Sibéria, convivendo com presos políticos. Neste momento, se dá conta da humanidade na prisão. Essa experiência, certamente, influenciou e impactou suas obras literárias posteriores. No total, o autor escreveu mais de 12 livros, se tornando mais conhecido por seus trabalhos literários escritos depois da prisão.

No contexto da época, temos a Questão Política (década de 1860), com reformas, como a do Poder Judiciário (1864), em que o Tribunal do Júri foi aberto ao público. Com isso, o autor busca inspiração no mundo jurídico penal. Trata-se de uma obra com muita simbologia, com personagens tipos, com características humanas peculiares e metáforas para pessoas da época.

Crime e Castigo ocorre em São Petersburgo. O protagonista da estória é Raskólnikov, um estudante pobre de direito, que abandonou o curso por pouco dinheiro. Com isso, o cotidiano do jovem marca-se por ficar no quarto pequeno e perambulando pelas ruas de São Petersburgo. Tal cidade é lúgubre, com vagabundos e comerciantes, adepta da tecnologia de produção ocidental, porém com ideias do Leste Europeu. Realmente, a grande massa da população não se enquadra nos moldes modernos.

O jovem, com pouco dinheiro, penhora seus bens, para uma velha mesquinha. Então, começa a refletir... sobre a lei e os valores morais. Interessante! Recorre à figura de Napoleão, pensando nas pessoas em dois tipos: 1) ordinárias; e 2) extraordinárias. Napoleão, certamente, uma figura histórica. O rapaz, assim, pensa em que tipo de pessoa seria. As do segundo tipo teriam ideais superiores, estando acima das normas vigentes e, por conseguinte, das do primeiro tipo.

Diante dessas reflexões, cogita a possibilidade de matar a velha e, com seu dinheiro, favorecer os pobres, fazendo o mal em prol do bem. Ele planeja o crime e mata a senhora à machadadas. Porém, sem planejar mata a irmã mais nova da senhora, pois ela presenciou o crime. O mancebo, assim, enterra os bens roubados, para recuperá-los depois.

A partir daí, o personagem mergulha em um estado paranoico, com sentimento de culpa. Confessa depois o crime para Sônia, uma jovem prostituta. A rapariga o aconselha a assumir a culpa. Daí sofre com questionamentos, em paralelo, ocorre a investigação do homicídio.

Para a expositora, a beleza da obra reside não no enredo, mas na densidade psicológica. Os personagens, com efeito, têm o bem e mal dentro si! Não num simples maniqueísmo. São, realmente, complexos. No cenário, pode-se refletir sobre o pensamento utilitarista inserido em conflitos morais. Raskólnikov tem um aprofundamento filosófico e psicológico. Temas como falta de moral universal, universalismo e outros, conduzem ao extremo de revogar o mandamento "não matarás". O extremo da razão humana desconstrói "Deus", com a morte de Deus. E, assim, desdobra-se... "Se Deus não existe, então tudo é permitido!" Trata-se isso do relativismo ético, em que os mandamentos e as leis são somente para seres ordinários e não extraordinários.

O personagem é órfão de Deus. Mata e sofre. A vaidade não suporta o fardo ou a culpa, na obra inteira é atormentado por culpa. Com certeza, consiste em um livro com perguntas sem respostas definitivas. Há também uma questão humanitária: matar uma mulher inútil para beneficiar pobres. O autor tece assim uma crítica ao pré-capitalismo. Na obra ocorre um deslocamento de tensão do fato criminoso para o homem criminoso, um ser doente, em conflito atávico. Com a assunção da culpa e da autoria do crime, o jovem criminoso renasce. Nesse sentido, pode-se dizer que o conhecimento ilumina o ser humano. Por outro lado, o estudante foi bárbaro, matou à machadadas! Também no contexto há o conflito entre moral e religião, da mesma forma, a utilidade social, o utilitarismo.

Tudo isso conduz à capacidade de reflexão sobre a humanidade, sobre o próprio direito penal! O ser humano como criminoso justifica em seu interior o crime, racionaliza a culpa. Quanto à punição, há o sacro e profano, o delito e o pecado. A penitenciária é o local onde ocorre o castigo. Por isso, o livro é tão atual, envolvendo o direito penal presente na obra e contextualizado com o personagem.

Outras reflexões decorrentes...

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Fica atrás somente dos EUA e da China. Na frente, da Rússia. A palestrante, assim, afirma que todos temos conflitos internos, nos identificamos com a obra, porque todos somos seres humanos complexos. Temos uma lição dura! É preciso pensar na realidade!

O Direito Penal aborda o delito e a pena. O primeiro é o que é tipificado. A segunda é a que se comina. Mas, não é tão simples, como se ensina nas faculdades de direito. O que é de fato o delito? Para que serve realmente a pena?

Sem respostas de manuais...

É necessário refletir além da dogmática e da lei posta!

O verdadeiro objetivo inerente é a política. De forma racional, busca-se o controle social, em que se coíbe a violência pela violência.

Com relação à história de evolução das penas, relacionadas aos delitos, Michel Foucault propõe, em suas obras, substituir penas cruéis por penas mais humanizadas. 

Há de um lado a justificativa da escola positivista, porém é preciso compreender a realidade atual.

Antes, havia o arbítrio absolutista, que migrou para o racionalismo liberal. Todavia, é necessário desconfiar do direito penal e da pena. Fatidicamente, a dogmática penal se afasta da realidade! Temos princípios lindos, que não passam de discurso vazio! A pena serve para ressocializar e educar? Com razão, temos um raquitismo teórico, uma teoria de 200 anos, vinda da Europa, outra realidade totalmente diferente. Isto é imposto aos manuais de direito penal de nossas terras brasileiras. Mas, não engana ninguém, de fato, não há aplicação prática!

No fim das contas, a culpa não é do Estado, do orçamento etc. Mas, do Direito que desumaniza pessoas. A grande lição de Crime e Castigo reside na contradição humana, que abrange raiva, culpa etc. O livro termina e não chega a resposta. Da obra decorrem muitas leituras, como dito, e também da ética. O autor foi um verdadeiro prisioneiro e de sua vivência como delinquente, de suas conversas com outros presos, teve uma experiência de vida fundamental, para construir sua eterna obra clássica, que perdura até os dias atuais. O conflito humano é diário! E o Sistema de Justiça não acompanha este ritmo!

Ricardo Peake Braga


A professora Ana Elisa Bechara presenteou o IASP com uma profunda e abrangente exposição sobre “Crime e Castigo”, de Dostoievski.

Como ela bem observou, a obra trata de fantasmas que povoam a alma do ser humano e sua pretensão de estar acima da moralidade comum.

A pretensão de saber o Bem e o Mal, de decidir o que é o certo e o errado, é antiga: é o próprio pecado original, comer da árvore do conhecimento do Bem e do Mal e “ser como deuses”. Gênesis, 3:5.

Longe de se tornar deus, quem se coloca acima do Bem e do Mal, quem pensa saber o que é o Bem e Mal, ingressa num inferno de angústia, de remorso, de culpa.

Raskolnikov vive seu inferno, expiando sua soberba com muita dor e angústia. Só encontrará a redenção quando Sonia mostra a ele o poder do amor, a superioridade do amor sobre o conhecimento.

O conhecimento deve sempre subordinar-se ao amor e à bondade. Sem eles, torna-se inevitavelmente criminoso.

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